Foi há 30 anos, no Rio de Janeiro, que Glauber aparou a barba, arranjou o cabelo e deixou crescer as asas e, depois de um episódio de breve, mas definitivo fenecimento corpóreo, decidiu sobrevoar as grandes e as pequenas cidades, burgos, aldeias e lugares. Tocar pessoas, acompanhar cães nos passeios, histéricos atrás das moscas, observou gatos e foi gatos. Troçou das efémeras porque se garantiu eterno.
Rompeu com aprumados, bem-vestidos, bem-falantes, bem-falados, agarrou indigentes, embalou mulheres grávidas solitárias e cuspiu no FMI. Viu Cristo e deu-lhe um par de tapas, por ele mesmo ter comido toda a areia que lhe cabia no estômago a fingir, para aliviar os sertanejos das vidas secas que levam. Encontrou Deus e fez-lhe uma rasteira rasteira pela distracção quanto aos Sem-Terra. Amparou Tom Zé da queda que iria dar na banheira e afinou o ré do violão de Toquinho. Sentou-se nos ombros do Corcovado, a jogar canasta com Guimarães Rosa.
Pediu satisfação a Cristo por Pixote e cada pivete mal-amado, desperdiçado, e recebeu uns quantos vindos direitinhos da Candelária. Tornou-os estros de Caetano e de Gil. Também o foram outrora de Cartola e Noel. Pelos favelados arriou, sussurrando, ciciando, murmurando, segredando, rumorejando que o “morro não tem vez”. Reviveu o tráfico negreiro e a lei Áurea, não pode deixar de achegar os trabalhadores dos grandes latifúndios aos negros da senzala e então bradou-se em lamúria, sangrou e sangrou, deliberou que toda a gente havia de ser livre, porque quem trabalha porque tem fome, tem fome de liberdade e de asas e de ar fresco.
Infiltrou-se sublimado num edifício gigante. Outrora fora uma construção de uns tantos blocos de betão armado, gradeado num padrão ora grade, ora cimento, ora grade, ora cimento. Agora, eram umas quantas caixas de cartão gigantes, para onde se jogavam homens criminais culpados dos males inteiros do Brasil. Empurrava-se aqui e lá cabia mais um, calcava-se ali e cabia outro pequenito, matavam-se dois para plantar uns cinco. Um dia, as caixas tiveram paredes côncavas e saíam coisas pelas grades e pelas juntas, pertences escassos dos homens ruins do Brasil. Felizmente, as forças policiais das caixas, com nome tupi-guarani, Carandiru, mataram uns quantos. As espumas dos sangues adidos ao éter de Glauber, agravaram o seu pêsame de eternidade em 250 homens.
Deu palmadinhas de alento e estímulo nas costas de Teotônio Vilela e nas de Tancredo Neves, abriu os braços pela emancipação do povo – Diretas Já! – exigia o PMBD. –Directas Já! Ajoelhou à tornada ao poder civil de ‘85, regozijou-se com a nova constituição federal de ‘88 e pelas directas para a presidência da república de ‘89, cantou hinos celestes saídos directamente do seu coração deveras revolucionário e lastimou fazer tão cedo a grande viagem e a sina de somente assistir a este prenúncio de dignidade dado ao seu povo assalariado, caipira, pescador, gaúcho, cantoneiro, flanelinha, favelado, mal-amado, que diria Jorge?
Desde há 30 anos, que beija todas as faces dos filhos todas as noites e as bocas de todas as mulheres, no beijo impassível de anjo que pode; continua a achar Chico burguês, mas, este, por sorte, continua esquerdista. Empurrou Dilma para o lugar onde ela está e ameaçou, cara-a-cara Médici de ajuste de contas. Amou com violência Tião por o macaco representar a estética da fome e a estética da violência.
Envergonhou-se de Collor de Mello, Ai Iemanjá! …e o que fez ele ao seu Brasil brasileiro, negro, mestiço, indígena, azul, verde, branco e amarelo, sincrético e depois patético e deflacionado!? Indignou-se com Sarkozy, com Obama, com a NATO, com o petróleo, com o gás natural, com a dívida ao Banco Mundial, rasgou as faces com mágoas de revolta, zanga e ácido porque para haver os que comem, sobra tanta mas tanta gente com fome e para haver quem se calce, existe tanta garotada descalça.
FILHOS DA PUTA – não sobra nada!
FILHOS DA FRUTA – não lutam por nada!
FILHOS DA GRUTA – não lhes cabe nada!
Cabe-nos a nós, sobra-nos a nós, temo-lo para nós: O SAL DE GLAUBER.
Comente