A idade da Terra

quinta-feira, 26 de novembro de 2009


Há escritores que, através do seu grande talento e perícia no uso da linguagem escrita, conseguem avançar a arte da Literatura ao produzirem obras que rompem com a norma e que nos oferecem novas paisagens linguísticas e literárias que, até então, nunca se haviam sonhado ou mesmo tentado, avançando assim essa mesma Arte.

No cinema também se observa este fenómeno quando, pontualmente, é lançado um filme que nos mostra que a 7ª Arte ainda tem muito para dar e reafirma a sua posição como meio de comunicação artístico de eleição do século XX. E quando temos a sorte de ter grandes artistas por trás das câmaras como é o caso do brasileiro Glauber Rocha, o mais certo é, mais cedo ou mais tarde, esse artista nos surpreender com uma obra que ficará para a História do Cinema como um objecto ímpar a ser estudado e reavaliado por gerações e gerações de cinéfilos.

Antes de passar ao filme em questão, um pequeno resumo sobre a obra de Rocha até então. Depois de lançar polémica atrás polémica com cada sucessivo filme que produz e de marcar a História do Cinema Brasileiro com a sua obra, com títulos tão emblemáticos como são TERRA EM TRANSE, DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, ou ainda O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO (também conhecido como ANTÔNIO DAS MORTES), Rocha vai para o exílio na Europa e em África onde fará alguns filmes que sofrem com a sombra enorme que a sua anterior obra projectará tanto na sua vida como na sua obra artística. Perseguido pelas suas ideologias radicais, só no fim da década dos 70 é que Rocha volta para o Brasil para filmar aquela que é, a meu ver, a sua obra magna, o seu testamento como realizador de cinema e artista iconoclasta – A IDADE DA TERRA.

Para melhor percebermos A IDADE DA TERRA, convém termos visto alguma da filmografia de Rocha, ou então, sabermos quais as suas crenças políticas e temas usados nos seus filmes para realmente percebermos em que medida A IDADE DA TERRA funciona com a súmula de tudo o que tentou fazer até à data. Digamos que é o seu FANNY OCH ALEXANDER, o filme onde vai colocar tudo aquilo que o inspira como artista e tudo aquilo que o corrói como ser político e humano. Desde o terceiro-mundismo (que sempre denunciou, assim como a maneira como os países primeiro-mundistas tiraram partido dessa mesma situação económico-financeira), ao orgulho pelas tradições nacionais (o candomblé, o cangaço, o sertão, o carnaval, enfim, tudo aquilo que é genuinamente brasileiro vai ser celebrado por Rocha), até à criação de um Cinema exclusivamente brasileiro (livre das influências europeias e, principalmente, de Hollywood que nunca retrataram fiel ou mesmo honrosamente as realidades do Brasil, reduzindo-os a estereótipos), Rocha foi um dos paladinos pela causa de um Brasil com uma identidade própria e livre dos americanismos a que estamos sujeitos há mais de um século a esta data.

E com A IDADE DA TERRA, Rocha lança um grito desesperado para uma espécie de libertação de todas essas amarras que mantêm presas as consciências culturais de um povo que tem todo o direito de se orgulhar da sua cultura. E fá-lo de maneira admirável. O filme tem cerca de 3 horas de duração e está dividido, por assim dizer, em vários trechos de acção onde uma determinada cena é interpretada (com grandes doses de improviso) até atingir um certo estado de delírio próximo do histerismo, tal é a intensidade que os actores impregnam às cenas em que estão envolvidos. E agora, vem a novidade – o filme não tem genérico de abertura, nem genérico final e Rocha deu instruções específicas para os projeccionistas decidirem arbitrariamente qual a ordem das cenas a ser feita na altura da projecção. E é exactamente esta abertura total e consequente liberdade na interacção com a obra fílmica entre o artista e o espectador que, para mim, representa um avanço enorme na maneira como podemos encarar o Cinema. Para culminar, está filmado num belíssimo Scope, com umas cores saturadíssimas a trazer constantemente à memória a noção que este filme só poderia ter sido filmado num único país do planeta Terra: o Brasil.

Obrigado, Glauber Rocha.