Macunaíma

sábado, 7 de novembro de 2009


Há poucos filmes que possuem a capacidade de pegarem em obras literárias de renome como é este MACUNAÍMA de Joaquim Pedro de Andrade (adaptação cinematográfica do romance homónimo de um outro Andrade, desta feita Mário) e de acrescentarem ou inovarem sobre esse mesmo suporte literário. Ainda bem que há excepções para confirmarem a regra e podem ter a certeza que estamos perante uma dessas excepções. Sem dúvida nenhuma.

Tanto o filme como o livro são obras chave para percebermos e apreciarmos dois movimentos fulcrais na evolução da cultura brasileira do século XX: o Modernismo dos anos Vinte no caso do romance, e o Tropicalismo dos anos 60 no caso do filme. O livro ainda hoje continua a ser um objecto único de fascínio intemporal, tanto na revolução que causou em apresentar-nos como herói da história um anti-herói “sem carácter”, tal como nos é introduzido (novidade para a altura, embora Dostoievsky tenha feito carreira com personagens dessa natureza e, até um certo ponto, também Kafka), como pela própria linguagem utilizada para contar uma história cheia de mudanças, metamorfoses e comentários sociais: Mário de Andrade passou anos a fazer um levantamento in loco dos dialectos utilizados pelas diferentes tribos brasileiras e o resultado é uma obra que constantemente nos surpreende pela “novidade” das suas palavras e pela extrema musicalidade com que são usadas.

Já o realizador, Joaquim Pedro, fez história sim porque faz um filme que vai cristalizar a grande revolução cultural que se estava a verificar no Brasil em finais dos anos 60, o já referido Tropicalismo, movimento que se vai propagar a todas as artes e provocar tais ondas de influência que ainda hoje se fazem sentir nas mais variadas áreas. Faz, no entanto, uma importante decisão a nível do argumento e, ao invés de utilizar a linguagem do livro que, embora fascinante, não se adequava a um guião viável, vai inovar, isso sim, na mise-en-scène e surpreender-nos com cores garridas, elipses narrativas e cenários tão primitivos quanto rocambolescos ou até com cariz circense. O Carnaval é outra peça chave neste contexto.

E agora, pergunto-vos? O que é que tem todo este movimento a ver com o canibalismo? Cultural, isto é! Querem saber? Pois bem, uma das palavras chave em toda esta revolução cultural é a Antropofagia, que é como quem diz, o canibalismo. Eu passo a explicar. Uma das razões pelas quais o Modernismo foi apresentado e criado foi exactamente por causa da intelligentsia brasileira da altura se ter fartado de ver a sua particular cultura (tão rica em tradições e costumes) desaparecer perante a supremacia económica da Europa e da América (mais ou menos o que ainda hoje se verifica, como poderão constatar). Propõem então o seguinte: adaptar essas mesmas influências externas à sua realidade, fazendo-as resultar num produto final muito mais interessante como resultado dessa mesma apropriação cultural (bem diferente do que se verificaria no caso da aculturação). Isto tudo cristaliza-se no Manifesto Antropofágico de um outro Andrade, Oswald de seu nome.

Passados 40 anos, uma nova vaga de artistas e intelectuais toma Mário de Andrade como mentor do Tropicalismo e Macunaíma como pedra angular da nova revolução. O melhor de tudo é que um filme à altura desses importantes ideais foi feito, despertando o interesse e a paixão tanto por parte da crítica como do público, tornando-se num dos maiores sucessos de sempre do cinema brasileiro de até então. Mas Joaquim Pedro não se fica por aqui e, num acto de coragem, e de génio também, vai fazer algumas mudanças a cenas-chave do livro adaptando-as à sua própria realidade e vivências pessoais, tornando o produto final uma obra de autor e não somente uma transcrição fiel de um qualquer suporte literário. De especial destaque o final do filme, bem diferente em tom e resolução do retratado no livro.

Bem, mas chega de academismos, embora eles para aqui sejam chamados para melhor percebermos a importância deste filme. É que, mesmo que não saibamos nada sobre o livro de onde foi tirada esta história, nem de todo o background por trás da sua criação, MACUNAÍMA há-de sempre ser um filme acessível ao grande público por ser tão cheio de vida, de cor e de surpresas constantes. E é aí que reside toda a sua magia. Vejam-no a todo o custo.